A Teogonia da crueldade

Porque antropomórficas e expressas em figuras humanas e materializando afinal sentimentos humanos, as religiões sofrem o risco de serem tomadas como criaturas do humano em busca do Divino e não expressões divinas dirigidas à percepção humana. Lógicas de ascese e não de iluminação do espírito, em suma, sublimação até da irresistível ânsia de crueldade.
Fundado na mitologia grega, mas alargando o objecto sobre o qual reflecte, Fidelino de Figueiredo constrói num livro que veio a lume em 1964 sob o título Símbolos e Mitos e que trouxe para ler, amarelo de armazém de alfarrabista, tisnado pelo sol de exposição à venda de rua: «Os homens comuns, com a sua perversa imaginação, sedentos de mal, encarregavam os deuses de executar as perversidades morais que lhes enchiam os corações e que eles não podiam pôr em obra. Assim será sempre nas mitologias ou nas teogonias que soem acompanhar o nascimento das religiões ou o seguem de perto mesmo ao credo mais poeticamente puro».
A iniquidade dos deuses seria assim apenas a pluralidade celeste da iniquidade do que existe em busca da maravilhosa razão da sua existência, a barbaridade de Cronos.

A relatividade do Absoluto

A ideia nossa contemporânea de que existe uma religião encimada por um só Deus que se revelou através de Sagradas Escrituras, escritas sob a inspiração do Divino Espírito Santo, o qual se transmutou em humano para, enquanto Deus, descer à Terra e garantir, pela morte de seu Filho e respectiva ressurreição, a salvação da Humanidade, quando conjugada com a ideia de que esse Deus - assim dogmatizado até ao infinitésimo pormenor pelos Doutores da Igreja - é o único Deus possível, todos os outros heréticos e inaceitáveis, pode fazer sentido para quem, aceitando a sobre-simplificação, não se dê ao trabalho de parar um pouco para pensar.
Basta ler, como folheei, ao iniciar esta manhã de trabalho fora de portas, os três volumes - reimpressos pela Imprensa Nacional - do monumental estudo sobre Religiões da Lusitânia, dado à estampa em 1897 - quando o positivismo cientista fazia assalto à fortaleza do pensamento em nome do império da Razão - para se nos colocar uma observação e uma questão.
A observação radica na circunstância de o estudo se deter na Lusitânia dos primórdios pré-históricos até ao período visigótico e surgir, inevitável, o querer saber, ante o que ali se revela, onde estaria esse nosso Deus actualizado - uno enquanto trinitário, fonte de todo o bem mesmo daquele que, após queda, fundou o Supremo Mal, Piedoso, ainda quando determinando as almas perdidas ao tormentos infernais da perpétua danação - de que se não vê, correndo aquelas páginas eruditas, minuciosas e fruto de estudo histórico, iconográfico e antropológico, vestígio algum, salvo a partir do século II DC.
A questão é a que consiste em saber se não é afinal de um Deus histórico, situado no tempo  na forma pelo qual o veneramos, saído da cultura judaica e suas ramificações, aqui chegado manu militari pelas armas dos crúzios, a Fé fruto do combate contra o tido por ímpio, mouro, infiel, aquele de que estamos a falar, tomando-o, ao relativo como objecto de Fé no Absoluto.
É que se não for assim, de um Deus oculto se trataria, que só se revelou ao humano após a sua Assunção humana na pessoa de Cristo, como se só então, ao proceder à sua aparição, desse ao Homem o benefício salvífico da sua luz, todos os outros aquém dos seus frutos.
Heresia ou dúvida de escrúpulo? Acreditem: questão para a qual gostaria de ter resposta, já que, pelo que tenho vindo a estudar, há factos que se revoltam contra as teorias e a Teologia que não for compreensível é autoridade que só verga a inteligência dos submissos. 
Religião de escravos em catacumbas, percebe-se que a elas se impusesse, sofridos que estavam com compungida submissão, aguardando, esperançosos, a caridade da redenção.