O primeiro passo, sentir!

 
Há sempre um dia que o transcendente ganha compreensibilidade. Foi preciso ontem ter encontrado, já ao encerrar a escolha de livros, a colectânea de artigos, coordenada por Pedro Galvão, intitulada Filosofia [Edições 70] e nesta o artigo de Agnaldo Cuoco Portugal sobre a Filosofia da Religião, para que, enfim, encontrasse o caminho possível que leva à estrada.
O autor, ao tratar da epistemologia da religião - o como conhecer o transcendente - leva-nos pelo pensamento de Ludwig Wittgenstein, via sedutora porque estamos ante a procura do Verbo e o filósofo foi essencialmente sobre isso que escreveu: a palavra, a linguagem.
E, ante a obra clássica deste magnífico austríaco, o Tractatus Logico-Philosophicus - essa obra escrita nas trincheiras da Primeira Guerra e publicada em 1921 [lê-la aqui em inglês e aqui no original] - detém-se na proposição 6.432 [todo o livro está sistematizado decimalmente], para com isso concluir que Deus, porque pertence ao inexprimível, recai no domínio da mística [proposição 6.522] e não se revela a este mundo.
Mas, é ao progredir para as Investigações Filosóficas, obra póstuma que só conheceria a luz em 1953 [e que ele retirara aliás do editor] que o pensamento se soergue à compreensão possível. Desenvolve-se ainda no campo da teoria da linguagem - o seu domínio eleito de observação - mas já pela heterogeneidade desta, abrangendo todas as linguagens possíveis, assim contextualizadas e interrelacionadas, situadas, em suma, como em um jogo, fruto da mundividência de cada pessoa, por isso mesmo impossíveis de serem comprovadas em absoluto quanto à sua verdade, inviável a sua confirmação empírica, insusceptível de ser colocado, em suma, o problema religioso no plano argumentativo.
Saímos, pois, no que à linguagem religiosa respeita, e no que ela permite a compreensão da transcendência, do caminho da racionalidade, da congruência, entramos no campo da crença, uma crença que decorre dos sentimentos, e por isso do convicto amoroso - em que se ama e se odeia - e por isso mesmo, entramos no território do indemonstrável, em que a contradição, o irrealizável, o enfabulado e o pressentido ocorrem natural, tumultuosamente, na intimidade de cada um.
Talvez assim os que na Teodiceia acumularam as provas da existência de Deus, tentando pela via argumentativa convencer-nos da sua existência como um Absoluto, decaiam pela força arrebatadora deste modo de ver que é, afinal, modo de sentir.
Deus - dirá o cura amarrado pelas aporias com que são confrontadas as provas racionais com que ele pretende vulgarmente demonstrá-Lo, descrevê-Lo e até figurá-Lo - «é uma questão de Fé». Não chega dizê-lo assim, argumento de autoridade que é esta expressão de derrota mental, porque incompatível com um Sumo Bem num mundo de horrores, porque inviável uma Suma Justiça transaccionada pela indulgência e pela tempestiva confissão, porque demasiado humano na aparência estatuária, na administração em diocese, na consagração em Igreja.
Falta o demais, vindo do fundo do coração, que o excesso de liturgia seca, fazendo o rito sobrepôr-se ao mito, o íntimo, o vivido, nesta religião por ser a dos pais ou a do País, com esta comunhão com o sagrado por ser essa a oração privada, doméstica ou pública, solitária ou catequística, católica, crística ou de todas as outras formas em que o ser se eleva da existência para a sua essência.
«Deus é uma questão de Amor», melhor diria esse cura, a sabê-lo, sem conveniência da frequência dominical. «Tal como a paixão», tal como o «conhecerem-se» os amantes em sentido bíblico.
Quem não ama não sabe, porque não sente. Este o caminho possível. Antes disto, nada. Há sempre um primeiro passo.