A Casa do Fundamento



1. Foi depois do Dilúvio. Os filhos de Noé, que com ele saíram da Arca, foram Sem, Cam e Jafé. «Esses três foram os filhos de Noé e a partir deles se fez o povoamento de toda a terra». Assim reza o Antigo Testamento.

2. Dispersos pelo mundo, rumaram então os homens para o Oriente e ali, na terra de Senear, a Babilónia, encontraram um vale, onde se estabeleceram e construíram uma cidade e uma torre, cujo ápice penetrava nos céus, a que se deu o nome de Babel. Vem no Pentateuco.

3. Todo o mundo se servia, então, de uma mesma língua e das mesmas palavras e, tendo a mesma língua, era um só povo. Para a sua torre erguerem, do tijolo que é pó fizeram pedra, do mole betume, que é lama, a argamassa.
À força de serem um só, ergueram-se às portas do céu. Conta-se no Génesis.

4. Foi então que Iahweh desceu sobre a terra e disse: «Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isto é o começo das suas iniciativas! Agora nenhum desígnio será irrealizável para eles». E, por isso, os dispersou por toda a terra e confundiu toda a linguagem. É esta, na Bíblia, a história da Torre de Babel.

5. A narrativa da Torre de Babel é uma história exemplar, uma daquelas paisagens que se atravessam em diferentes direcções e, de cada ângulo, é sempre uma visão diversa que se tem do mesmo mundo.

6. No ângulo teológico ela é perturbadora da fé, porque aflige a crueldade de Iahweh, o senhor Deus, e os erros de que o Todo-Poderoso é, afinal, capaz. Iahweh, por causa de ter o homem, que ele criara à sua imagem e semelhança, comido o fruto proibido, havia lançado sobre a humanidade a danação eterna. E isto só porque, ao comê-lo, ao pomo da árvore da sabedoria, o homem se havia tornado, afinal, «versado no bem e no mal».
Iahweh, porque havia criado a maldade no homem, sobre o que o não queria versado, e vendo que «a maldade do homem era grande sobre a terra e que era continuamente mau todo o desígnio do seu coração», arrependeu-se, ele que é o Sapientíssimo, de ter criado o homem e decretou, ele que é o Sumo Amor, a sua erradicação da face da terra, mais os animais, os répteis e todas as aves do céu. E, assim, com instinto assassino, Iahweh lançou o dilúvio sobre a terra. Só Noé escapou, porque Noé «encontrou graça aos olhos de Iahweh».

6. É assim no Antigo Testamento: por causa do pecado original de Adão, pagam todos os da humanidade, sem culpa; porque Deus se arrependeu de ter gerado a maldade no homem, que criara semelhante a si, arrasou maldosamente a humanidade.
E, ao escapar Noé, nem se entende se foi por ser «justo e íntegro entre os seus contemporâneos», se foi porque, entre os da «terra pervertida», Noé «encontrou graça aos olhos de Iahweh».
Faltava só que, tendo Deus prometido para consigo que não mais amaldiçoaria a terra por causa do homem, tendo Deus feito mesmo uma aliança com todos os homens e animando-os a que se multiplicassem, povoassem a terra e a dominassem, assim eles, com a torre de Babel, tomaram a primeira das suas iniciativas, logo Ele os confundiu e dispersou.

7. Estranha teodiceia esta, que tais achados nos traz: erro, culpa, castigo, pecado, vingança, extermínio, acaso, graça, ambição, iniciativa, perversão e poder, está tudo aqui nesta narrativa que é «das origens do mundo e da humanidade», onde nos surpreende um Deus divino mas, visto seu comportamento, humano, demasiado humano.

8. A torre de Babel que sempre me impressionou foi, porém, a que coloca existencialmente o homem perante a sua condição absurda. A ambição, o sonho de grandeza, o ideal de imortalidade, tudo o que faz do homem o ladrão do fogo dos deuses, precipitam-no na queda abismal: é a danação do homem, condenado à sua natureza mortal. A pluralidade, a diversidade, a originalidade criativa, aquilo que lança Ícaro pelos céus do sonho, exilam-no para a sua condição degredada de estrangeiro na sua própria pátria. Joguete cego às mãos do acaso, instrumento de uma natureza maligna que não criou mas é obra do Criador, o homem caminha, inexorável, e com ele tudo quanto é vivo, para o patíbulo da morte mais cruel, afogado na penitência da sua culpa.

9. Vivemos hoje um século de confusão. Porventura mais grave, e que nos irá condenar, é termos confundido, a Ocidente, a Babel simbólica com a Babilónia terrestre e termos querido, imitando Deus, confundi-la e dispersá-la.
Tal como Xerxes I [479 AC], tal como Alexandre, o Grande [331 AC], esquecemos que nas margens do rio Eufrates está o lugar sagrado da aliança entre o homem e o seu Deus, «a casa do fundamento do céu e da terra».