Trinta dinheiros

Segundo a tradição [Mateus, 27:5], Judas ter-se-ia enforcado de remorso, como um desesperado, por ter traído Jesus por trinta dinheiros de prata. A sua traição, porém, abriu a porta à morte de Cristo, entregando-o aos romanos. Diabolizado a partir do Novo Testamento, ele tornou-se a figuração da malignidade.
A Malhação de Judas, no Sábado de Aleluia, é a forma de se reconciliar o povo com os valores da decência e da lealdade que o Iscariote quebrou. Os portugueses e os espanhóis levaram o costume para a América Latina. Com ele o bode-expiatório é um modo de se purgarem os pecados colectivos. Em alguns lugares queimam-no.
O embaraço é que, por aproximação fonética e etimológica, há países onde se chama «la quema del judio». Assim mesmo, anti-semiticamente.

O mistério

É a Páscoa que marca a diferença, não o Natal. Neste, até os pagãos e os indiferentes se reunem em torno da ideia que é a Festa da Família. Na Páscoa não. Ou a evangelização cristã cavou um sulco nas famílias e nos seus membros, ou ficam-se as criaturas pelas amêndoas e por outras doçuras, algumas em coelho. E, no entanto, a noção da ressureição é hoje um anseio catártico em muitos corações doridos. Continua, porém, a ideia cómoda de que seja um Messias que morra por nós na cruz, subrogando-se ao nosso sofrimento. Nisso continuamos a ser pecadores impenitentes.
A verdade mais duvidosa é, porém, a de que esteja ali, cravado de espinhos, Deus humanizado. Não perdoaríamos à nossa humana mediocridade que o Impensável pudesse ser sentido deste modo tão doloroso.
Talvez seja essa a verdadeira natureza da Páscoa: o homem esperar pela redenção da sua condição de humano que ambiciona o pecado de pensar o Divino. O único incorpóreo, o Espírito Santo, esse, assim possível, garante a continuidade do mistério.