E no tornar te afundes


Como escreveu prodigiosamente Teixeira de Pascoaes no seu livrinho «A arte de ser português», falando aí dos defeitos da alma portuguesa: «o bom senso nacional conciliou o culto divino e o maléfico. Deus e o Demónio são incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal».
E se um povo, tal como um homem, possui a qualidade dos seus defeitos, pois não é já refrão proverbial da cultura tradicional portuguesa o dizer-se «contigo, senhor Diabo, antes de bem que de mal»? E, no entanto, tudo isso intriga!
Porquê, se por virtude ou por pecado, precisamente em Portugal este pacto perpétuo com o Diabo?
Julgamos que por uma particular natureza complexa do ser portugês: a sua profunda religiosidade natural e o seu intrínseco paganismo, coração e ventre num só corpo primordial.
O português, porque é sentimentalmente religioso, crê convictamente num Deus geral e total e sente, por isso mesmo, que o Diabo é uma criatura divina, produção da potência sagrada que lhe dita a sorte e o fado. Sabe, como Pessoa, o poeta de raça lusitana, mas sem nisso pensar sequer ou como isso se preocupar, que «tudo é um. O satânico é tão-somente a materialização do divino».
Mas o português, porque é vivencialmente pagão, venera deuses particulares e comporta-se como um danado, dita a sua própria queda, cede às constantes tentações do Maligno e culpa ocultos sortilégios da sina do seu penar contemporâneo.
Pactuam os portugueses com o Demónio e, fatal coincidência, com o Diabo houve nome de Portugal: é que é na encarnação rastejante da serpente que se explica e manifesta biblicamente a tentação do mal, que fez perder nossos primeiros pais. Nas escrituras, Satã é uma cobra.
E se o mesmo S de serpente o é o de D.Sebastião, a serpente alada tornada em dragão é também a pedra de armas joanina do antigo Reino dos portugueses.
E Ofiúsa o ofídeio designativo antigo do local onde hoje está Portugal.
Disse-o esplenderosamente Dalila da Costa Pereira, a abrir o prólogo de uma sua obra que simbolicamente trouxe como título «Da Serpente à Imaculada»: «Para tentar apreender o segredo da pátria portuguesa mesmo num só fragmento, será permitido começar por vê-la como telúrica, infernal e oracular, salvífica e ainda limítrofe: como terra de fronteira».
Trata-se, pois, de exorcizar a Nação dos portugueses, mesmo com aqueles que, por causa dos templos das luzes, não exergam ainda o culto das trevas.
É que o demónio não só há, como é!
E pior do que isso, o mais belo artifício do Diabo é persuadir-nos precisamente que não existe. Disse-o Baudelaire e escreveu As flores do mal.
Não acreditar que ele existe é bem mais tentador do que acreditar apenas que não existe: tenta-se assim o mais fraco homem, como a mais forte ideia.
Esconjuremo-lo, pois, e com a litania popular «vade retro Satanaz, t’arrenego maldito mafarrico, canhoto, cão tinhoso, porco-sujo, vai e não tornes e no tornares te afundes».

Às portas do Purgatório

Antes de começar a escrever, impõe-se que se diga do que se escreve e porquê sobre isto escrever.
O tema é daqueles que são aptos a gerar equívocos, quer nas almas sensíveis, quer nos que se pautam pela racionalidade. No contexto do equívoco vem o medo e a história do medo integra num dos seus capítulos mais vastos o receio do Maligno, o pavor das fogueiras infernais.
Escrever sobre ele é, além disso, entrar por um vastíssimo território, que encontramos povoados pelas mais diversas e por vezes bizarras figuras. São, por um lado, os antropólogos a exumar nas mais antigas civilizações essa presença do Diabo e a encontrá-la hoje ainda presente nos meios marginais da juventude urbana e nos círculos refinados da alta sociedade; são, por outro, os religiosos a fazerem do Céu-Inferno-Purgatório, uma forma de garantir a prevenção geral de boa conduta sem pecado do seu rebanho paroquial.
A mim o que me interessou e aquilo sobre o que recolhi alguns dados e a que dediquei alguns escritos foi à configuração dogmática do ser, qualquer que seja o seu nome e a sua forma.
Ela obtém-se e diria mesmo surpreende-se por várias formas.
Primeiro, nos textos sagrados das várias religiões e algumas espiritualidades afins e haverei de comparar, para me referir à que nos é mais familiar, a católica, para verificar em que medida há diferença no Antigo e no Novo Testamento a propósito desta figura.
Depois, nos manuais dos inquisidores, pois que o Santo Ofício habilitava os seus familiares com o necessário para conhecerem a força maléfica que gerava as heresias que em nome da fé se combatia pelo fogo. Manuais de exorcistas e com ele o Ritual Romano, tratam igualmente do assunto e a seu tempo para aqui serão chamados.
Além disso, há também a obra de todos quantos, da Magia Negra ao Ocultismo, passando pelas várias formas de conhecimento iniciático e esotérico se encontraram em algum momento ou por uma qualquer forma com esse adversário. Não serão apenas as Clavículas de Salomão, ou os livros de bruxaria que podem conter corruptelas de uma doutrina que tem o seu sistema, a sua ordem e sobretudo a sua teleologia.
Em suma, tudo isso e o mais que se verá será o «corpus» a partir do qual se construirão os textos que aqui irão arquivar-se.
Para esta noite fica apenas uma pergunta: mas existirá a criatura de que nos propomos escrever? A resposta é simples: perguntá-lo é já crer na sua existência. Como se disse a propósito do seu Outro, o indizível, nunca conheci verdadeiros ateístas, mas simplesmente anti-deístas. Mutatis mutandis, eis-nos com o problema em cima da mesa: às portas do purgatório, as benditas almas iniciam a sua viagem até aos infernos. É a descer, segundo se diz.