Às portas do Purgatório

Antes de começar a escrever, impõe-se que se diga do que se escreve e porquê sobre isto escrever.
O tema é daqueles que são aptos a gerar equívocos, quer nas almas sensíveis, quer nos que se pautam pela racionalidade. No contexto do equívoco vem o medo e a história do medo integra num dos seus capítulos mais vastos o receio do Maligno, o pavor das fogueiras infernais.
Escrever sobre ele é, além disso, entrar por um vastíssimo território, que encontramos povoados pelas mais diversas e por vezes bizarras figuras. São, por um lado, os antropólogos a exumar nas mais antigas civilizações essa presença do Diabo e a encontrá-la hoje ainda presente nos meios marginais da juventude urbana e nos círculos refinados da alta sociedade; são, por outro, os religiosos a fazerem do Céu-Inferno-Purgatório, uma forma de garantir a prevenção geral de boa conduta sem pecado do seu rebanho paroquial.
A mim o que me interessou e aquilo sobre o que recolhi alguns dados e a que dediquei alguns escritos foi à configuração dogmática do ser, qualquer que seja o seu nome e a sua forma.
Ela obtém-se e diria mesmo surpreende-se por várias formas.
Primeiro, nos textos sagrados das várias religiões e algumas espiritualidades afins e haverei de comparar, para me referir à que nos é mais familiar, a católica, para verificar em que medida há diferença no Antigo e no Novo Testamento a propósito desta figura.
Depois, nos manuais dos inquisidores, pois que o Santo Ofício habilitava os seus familiares com o necessário para conhecerem a força maléfica que gerava as heresias que em nome da fé se combatia pelo fogo. Manuais de exorcistas e com ele o Ritual Romano, tratam igualmente do assunto e a seu tempo para aqui serão chamados.
Além disso, há também a obra de todos quantos, da Magia Negra ao Ocultismo, passando pelas várias formas de conhecimento iniciático e esotérico se encontraram em algum momento ou por uma qualquer forma com esse adversário. Não serão apenas as Clavículas de Salomão, ou os livros de bruxaria que podem conter corruptelas de uma doutrina que tem o seu sistema, a sua ordem e sobretudo a sua teleologia.
Em suma, tudo isso e o mais que se verá será o «corpus» a partir do qual se construirão os textos que aqui irão arquivar-se.
Para esta noite fica apenas uma pergunta: mas existirá a criatura de que nos propomos escrever? A resposta é simples: perguntá-lo é já crer na sua existência. Como se disse a propósito do seu Outro, o indizível, nunca conheci verdadeiros ateístas, mas simplesmente anti-deístas. Mutatis mutandis, eis-nos com o problema em cima da mesa: às portas do purgatório, as benditas almas iniciam a sua viagem até aos infernos. É a descer, segundo se diz.