A Teogonia da crueldade

Porque antropomórficas e expressas em figuras humanas e materializando afinal sentimentos humanos, as religiões sofrem o risco de serem tomadas como criaturas do humano em busca do Divino e não expressões divinas dirigidas à percepção humana. Lógicas de ascese e não de iluminação do espírito, em suma, sublimação até da irresistível ânsia de crueldade.
Fundado na mitologia grega, mas alargando o objecto sobre o qual reflecte, Fidelino de Figueiredo constrói num livro que veio a lume em 1964 sob o título Símbolos e Mitos e que trouxe para ler, amarelo de armazém de alfarrabista, tisnado pelo sol de exposição à venda de rua: «Os homens comuns, com a sua perversa imaginação, sedentos de mal, encarregavam os deuses de executar as perversidades morais que lhes enchiam os corações e que eles não podiam pôr em obra. Assim será sempre nas mitologias ou nas teogonias que soem acompanhar o nascimento das religiões ou o seguem de perto mesmo ao credo mais poeticamente puro».
A iniquidade dos deuses seria assim apenas a pluralidade celeste da iniquidade do que existe em busca da maravilhosa razão da sua existência, a barbaridade de Cronos.