Cave frater! Hermann Hesse

O livro é estranho, mas de modo desigual: a partir do capítulo terceiro talvez os olhos do leitor se tenham habituado às trevas e tudo pareça mais claro e, por isso, mais simples e, assim, mais vulgar, como tal menos surpreendente. Mas a leitura é imparável.
Breve texto, lido numa noite, é o de uma viagem, não iniciática, mas a de um Adepto; uma dupla viagem, a primeira, em cruzada, em busca de um local idílico, a segunda, a de um de um condenado em busca da expiação.
Pelo meio, floresta narrativa carregada de simbólica, a questão filosófica do reconhecimento como legitimação: quem pertence, reconhece os demais e é por eles reconhecido; quem se ausenta, perde a luz, cego, torna-se incapaz de reconhecer quantos outros, torna-se aos olhos deles invisível.
A Viagem ao País de Amanhã é, nas palavras do seu autor a «inaudita viagem». A personagem, sempre anunciado pelas iniciais do nome, H.H., bem poderia ser a do autor do livro, o mesmo que escreveu O Lobo da Estepe e Siddharta, adepto de uma Ordem, ocultista e de contornos indefinidos, misto das experiências orientais, indefinível pelo nome daqueles que, escritores, artistas ou filósofos, ao longo da narrativa surge como tendo estado na sua origem ou nela filiados: Ferdinand Ossendowski, Zoroastro, Lao Tse, Platão, Xenofonte, Pitágoras, Alberto Magno, Dom Quixote, Novalis, Baudelaire, e uma personagem de livro, Tristram Shandy, surgido na obra em nove volumes de Laurence Sterne.
Situado no território indistinção do real com o imaginário, o livro, com recônditos de ironia, traz nas suas entranhas, íntima confissão, a da «vontade do esquecimento», como sentiria o penitente, auto-acusador, saído do negrume da câmara de reflexão, entre o labirinto de galerias, escadas e ante-salas, perdidas, afinal, as referências, a antecipar o momento de «proferir sobre si mesmo a condenação» antes que os da "Suprema Cátedra" o sentenciassem.
Há nas suas páginas o imenso arquivo de insólitos, os próprios lugares reais parecem imaginados: Famagusta, Zipangu, Blautopf, monumental chancelaria de nomes e documentos, o seu também ali, catalogado, em enigma, no labirinto, como «Chattorum r. gest. XC civ. Cal. infid. 49».
Negação da razão e seus monstros, «nunca fazer contas, nunca me deixar enlevar por argumentos racionais, encarar sempre a fé como mais forte do que a chamada verdade», se lema nele existe, é o que lhe dá mote, história de peregrinação e reencontro. Vou tentar ler todos os outros, lápis na mão, sublinhando, afina, em cada página, quase tudo, raras as clareiras sem um outro sentido, o mais profundo.


Edição Cavalo de Ferro, 2ª edição, 2016, tradução de Mónica Dias