A inconveniência do verbo


A Transcendência, a ser, não coexiste nem com figuração, menos ainda humana, doutrina, ou o que seja que se relacione como causa da sorte individual de cada um de nós. É anterior à existência. Nenhum templo a representa, nenhum profeta a anuncia, nenhum sacerdote a concelebra.
A Transcendência, a ser, em nada será o que a equivalha ao mundo do ter. É inescapável, inapreensível. Nenhum livro é sagrado, nenhuma verdade revelada, nenhum arcanjo é mensageiro.
A Transcendência, sendo, não espera veneração nem retribui. Está no limbo do absolutamente indiferente. Não há demónios que tenham em seu nome gerado infernos.
O Homem é que, na sua ânsia de realidades compreensíveis e materializáveis, concebeu tudo quanto, em nome do transcendente, vai para além do símbolo, um mundo à sua escala, insignificante até na sobrenaturalidade tão diminuída ela é.
Momentos há, porém, como síncopes no devir do tempo e lacerações na continuidade do espaço, em que um fulgor irradiante ilumina, breve e estonteante, as entranhas do ser, criando pela maravilha a dúvida. Surge então a eterna caminhada, rumo ao ignoto.
Vidas há em que só o limiar da maravilha é pressentido.
À Transcendência, porque Substância de que tudo é atributo, nenhum verbo convém.
Está aqui o equívoco das confissões, religiosas sejam ou filosóficas, desde o primeiro segundo em que existiram, no primeiro infinitésimo de segundo em que foram pensadas. Nenhuma, absolutamente nenhuma vem desde sempre, todas são, afinal, o modo de a História se corporizar a partir de então em grotesca aproximação ao infinito além. A relatividade do tempo da sua vida mostra a sua incompatibilidade com o absoluto de que se proclamam.

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Quadro de Jean Gudin, fonte aqui