A Bíblia Grega: Frederico Lourenço traduziu

 


Dez anos de trabalho árduo, e eis o sexto volume da Bíblia, traduzida a partir do grego por Frederico Lourenço. Fica a faltar o segundo tomo do quinto volume, sucedendo que o primeiro, editado em 2018, conheceu, entretanto, nesta série, saída pela Quetzal, uma segunda edição revista e aumentada face à publicada em 2016.

Li, no dia feriado de hoje, deste último volume, ontem adquirido, o texto prefacial e a introdução. 

O propósito vinha anunciado já no tomo inicial, que tive há meses o cuidado de estudar: trazer-nos a Bíblia grega e em grego «foram originalmente escritos os 27 livros que integram o Novo Testamento, assim como os sete livros do Antigo Testamento que encontramos nas Bíblias organizadas segundo o cânone católico», enquanto os «restantes 39 livros do Antigo Testamento do cânone católico foram originalmente escritos em hebraico (com algumas frases desgarradas em em aramaico nos livros de Génesis, Jeremias e Esdras, assim como uma secção mais relevante neste língua no livro de Daniel)».

O contraste com a Bíblia hebraica é evidente e não tem apenas a ver com a número e a arrumação dos livros sacros, mas decorre de razões de relevante substância doutrinal e a tal ponto que, sob o Santo Ofício da Inquisição era punida, como herética, a leitura bíblica em qualquer outra língua que não a traduzida do latim. 

Que posso deixar aqui como pálido apontamento em relação a esta leitura, agora iniciada? 

Primeiro, a comoção sentida ante a íntima confissão do autor de tal monumental tarefa, quanto a ter iniciado a tradução «numa atitude de afastamento em relação à Igreja Católica» e o longo processo de tradução tê-lo ajudado a «rever e a reequacionar a minha identidade anterior de ex-católico, permitindo-me resolver  os empecilhos que me tinham mantido afastado do catolicismo».

Depois, coisa já minha, que, nem a interpretação literal dos evangelistas, aptos e encontrar uma semântica coerente através da mera hermenêutica do Livro, nem a autoridade dogmática dos doutores da Igreja, podem ser tomadas como valores absolutos, antes meras referências aproximativas de uma extensa narrativa, incoerente no pormenor, porquanto fruto de diversas fontes, resultado de sedimentação de tempos históricos sucessivos, escrita poética e alegórica, violenta quantas vezes, povoadas de seres tremendos de venalidade e barbárie, como é comum nos textos pré-cristãos, os do Pentateuco.

E enfim, mesmo que a Fé não resulte da Graça e seja assim um dom apenas oferecido aos eleitos, ela não tem necessariamente que resultar de um aprendizado teológico. Todos, nisso incluindo os privados da capacidade de ler, não poderão considerar-se excluídos de caminharem ao encontro de uma espiritualidade, pagã seja, esotérica, panteísta ou centrada num único Deus. 

Mas felizmente há quem escreva, pensa, traduza, publique para que outros possam ter, no estudo do fenómeno religioso, horizontes mais alargados. 

Assim o humano triunfe sobre o grosseiro materialismo que o reduz de pessoa a indivíduo, até finar-se como passivo consumidor e activo contribuinte fiscal, estatística para as contas do Estado, animal embrutecido ante a torrencial chuva dissolvente da dita sociedade da informação e do espectáculo.