Michel Houellebecq: a sofrida expiação salvífica da sordidez


Detestava Michel Houellebecq sem saber porquê. Talvez a aparência física da sua pessoa, o que é sempre um primeiro critério sintomático, nem sempre falível.

Depois dei comigo a lê-lo, a narrativa nele obsessiva, como em Albert Camus, a da angústia, do desespero, mas também da promíscua devassidão, território este estranho ao autor de La Peste, em que a sensualidade era sublimada pela arte e tornada assim insubmissa revolta contra o pecado original, o eterno retorno de um ser estranho às pulsões do seu próprio corpo e, afinal, condenado a suportá-lo.

Tornou-se-me perplexidade, sim, conceber como foi possível a Houellebecq passar da devoção a Arthur Schopenhauer e com ele o triunfo metafísico da vontade, tanto no humano como na própria natureza inanimada, e render-se a Auguste Comte, ao positivismo deste e assim ombrear com a vitória do cientismo sociologista e com uma religião natural alheia a uma verdade revelada.

Será esta contradição provocante, temi, afinal a sua biografia intelectual, ou talvez um pouco de tudo isto mais um arfar de tragédia nietzscheana, essa dialética oscilante entre o infinitamente supremo e o infinitamente insignificante, nele tornado Literatura ou, receio concluir, ainda menos, muito menos mesmo, por ventura a mera aparência filosófica superficial a dar lastro a um narrativa repassada de horror, vazio e impossibilidade de salvação, mundo rasteiro sem transcendência de qualquer espécie.

Enfim, vencida a repugnância - e é este o termo - iniciei-me pelo pequeno livro - os seus livros são normalmente breves, intensos mas não extensos - "Extension du Domaine de la Lutte", escrito em 1994, e logo ali irrompe, no mais insólito contexto, a dar por encerrado um trilho pela desolação, a ideia de Deus, aposta, direi hereticamente, ao tratador de vacas bretãs, porque inseminadas artificialmente para reprodução, aquele o paradigma humano do Criador ante a sua criação.

A fórmula descritiva [«Les pathétiques meuglements du bovidé s'avéraient incapables de fléchir da sentence du Grand Architecte»] faz irromper esta inesperada e descarnada menção num contexto francês, como projecção epifenoménica do período iluminista e com ela a irreligiosidade das igrejas constituídas,  tudo "aggiornato" a uma contemporaneidade em contraciclo provocatório face ao que possa parecer politicamente correcto, vagido dos "répentis" do tumultuoso Maio de 68.

Só que o livro, depois da descida aos infernos da decadência moral, da banal vulgaridade quotidiana e da humilhante impotência física, atingido o paroxismo do pessimismo e da misantropia, aproxima-se do fim com a inesperada alusão a uma visão mística da catedral de Chartres, repositório do «segredo último».

Algo se anunciaria no horizonte, supus. Poderia ter sido mais, mas o texto encerra-se por este fogo fátuo de expectativa.

Segui em anseio de algo mais que trouxesse mais.

Ganhei pouco ao ter-me aventurado, entretanto, pela colectânea de recortes que Houellebck levou a efeito em 2005, comentando, em estilo incerto, excertos do pensamento schopenhauereano, retirados das suas obras mais representativas, entre as quais os Aforismo [Parerga e Paralipomena, publicados em 1851].

Traduzidos pelo próprio, são brevíssimos momentos - o livro, em oitavo, editado pela L'Herne, tem 91 páginas - e fica a sensação de haver algo equivocado nesse esforço, sobretudo porque tão diminuto face ao que é a densidade e dimensão do escrito pelo filósofo alemão para quem equivaliam o apreço por Immanuel Kant e o desprezo por Friederich Hegel.

Ante esta falsa pista, inconsequente no resultado, não desisti. 

Estou actualmente mais perto cronologicamente do que tem escrito. 

Olhando-o com desconfiança de um possível "rock star" da contra-cultura, leio "Sérotonine", livro mais demorado, que publicou em 2019. Setenta a tantas páginas volvidas, para além de menções insólitas ao franquismo e sua relação de sucesso com o turismo espanhol e da agora tornada presença habitual da pornografia e do onamismo como variantes carnais da amputação amorosa, ainda prossigo do subterrânea à superfície em busca de algo mais.

A busca da transcendência anunciada existirá por certo. 

Daí que, outro dia, entre outros tantos Houellebcqs's que comprei na Nouvelle Librarie Française, me chegou às mãos uma compilação de ensaios, publicada este ano, sob a direcção de Caroline Julliot e Agathe Novak-Lechevallier intitulado - e aqui, sim ostenta-se, ufana a bandeira do autor da Gaia Ciência - intitulado "Misère de l'homme sans Dieu, Michel Houellebecq et la question de la foi".

Tentarei ler, assim possa. Agathe Novak-Lechevallier publicara em 2018, na mesma editora Champs [do grupo Flammarion] um ensaio a que deu como nome "Houellebeck, l'art de la consolation". Está aqui também, à espere de vez.

Regresso a Schopenhauer. Num breve livro que reúne testemunhos daqueles que com ele privaram - e conseguiram vencer a irascibilidade que era a insuportável guardiã de uma alma dizem que suave -  publicado o ano passado por "Le Passeur Éditeur", denominado "La fin du monde, voilà le salut", Karl Boer, que privou com ele entre 1856 e 1858, recorta das memórias que dele ficaram, a presença do budismo e a virtude do ascetismo.

Se estão aí as referências de Michel Houellebecq, terei de procurar melhor. Julguei ter lido "O Mundo como Vontade e Representação" não teria vinte anos. Não tinha lido afinal. A edição era uma resumo tosco e eu não conseguir perceber o que valesse a pena, apto apenas a confundir o pensador alemão com o dinamarquês Soren Kirkegaard, ambos expoentes do pessimismo e do sofrimento como expiação e via salvífica a que estaríamos condenados. Confusões iletradas de juventude. Espero melhor sorte agora.